A primeira edição do livro “A Senhora de Pangim” da autoria do escritor brasileiro Gustavo Barroso completa em 2012 80 anos da sua publicação. O livro ficcionaliza a vida da brasileira Maria Úrsula de Abreu e Lencastre, a mulher soldado, vulgo Balthazar do Couto Cardoso, que esteve como militar e morreu nas terras da antiga Índia Portuguesa nos inícios de século 18.
Em 2012 completam-se 80 anos da publicação da primeira edição do livro A Senhora de Pangim da autoria do escritor brasileiro Gustavo Barroso. O livro, publicado no Brasil em 1932, é um romance histórico onde é ficcionalizada a vida de Maria Úrsula de Abreu e Lencastre. Esta brasileira aventurou-se na vida real como mulher soldado, vulgo Balthazar do Couto Cardoso, nas terras da antiga Índia Portuguesa nos inícios de século 18. É em torno desta figura verídica que Gustavo Barroso foca a sua obra de ficção histórica.
O romance descreve, com uma elevada fidelidade, os aspetos da sociedade de então. E como existe uma forte coincidência dos factos do romance com a realidade, tudo leva a crer que Gustavo Barroso tinha alguns bons contatos com Goa ou goeses tendo consultado ou tido acesso, para a elaboração desse romance, a documentos fiáveis da época. Até o vocabulário usado pelo autor nesta sua obra revela o seu grande conhecimento da estrutura social e da vivência da sociedade dos séculos 17 e 18, seja em Goa, seja em Portugal.
Uma história “Para adultos”
O romance tornou-se no Brasil tão famoso que décadas depois era até publicado sob a forma de uma história em banda desenhada (história aos quadradinhos ou história em quadrinhos). Esta edição de banda desenhada apareceu no nº 116 de janeiro de 1956 da revista Edição Maravilhosa Extra com desenhos de Gutenberg Monteiro e tinha 50 páginas. Um aspeto curioso desta edição de banda desenhada e revelador da época é que na capa aparecia a indicação “Para adultos”.
A “Edição Maravilhosa”, lançada no Brasil no final dos anos 40, tornou-se famosa por ter levado às bancas, num trabalho pioneiro para a época, centenas de clássicos da literatura, não só estrangeiros, mas principalmente os brasileiros. Para os leitores mais velhos deste artigo é bom recordar que a “Edição Maravilhosa” foi uma iniciativa de Adolfo Aizen, um russo naturalizado brasileiro, fundador também da famosa Editora Brasil América. Aizen foi pioneiro de banda desenhada no Brasil e um dos principais responsáveis pela introdução no Brasil das histórias em quadrinhos norte-americanas, como Mandrake, Tarzan, Dick Tracy, Príncipe Valente e Flash Gordon.
A primeira edição oficial portuguesa do romance A Senhora de Pangim foi publicada porém apenas em 1940 pela Agência Geral das Colónias no âmbito das Comemorações Centenárias nesse ano da «Fundação» e da «Restauração» de Portugal.
Um exemplo de “brasilianidade”
As críticas em relação ao romance A Senhora de Pangim, ao seu autor e à sua personagem principal Maria Lencastre, variam consoante o posicionamento sociológico, ideológico e político dos críticos. Para uns, como é o caso do comentador da Rua Onze.Blog, a edição portuguesa da obra serve para ilustrar a apropriação que o Estado Novo em Portugal fez de todos os textos que pudessem servir a sua propaganda ao conceito de Império. Conceptualmente, seria uma obra que servia perfeitamente o propósito imperial, uma vez que o enredo se desenvolve em quatro continentes – América, Europa, África e Ásia.
Outros realçam o facto de Gustavo Barroso ter escolhido Maria Úrsula de Abreu e Lencastre como figura principal do seu romance pelo orgulho que Gustavo Barroso sentia pela “brasilianidade” da figura. Assim o faz por exemplo Ernestine Carreira da Université de Provence (França) no seu artigo “De la fascination du voyageur à la curiosité de l’historien – Les chrétiennes de Goa dans la littérature historiographique”.
Há ainda mais recentemente o grupo de feministas e dos movimentos em prol da igualdade de direitos da mulher que não se cansam de projetar também a figura de Maria Úrsula de Abreu e Lencastre como um exemplo de brasileiras que se aventuraram, com sucesso, em áreas exclusivamente masculinas.
Gustavo Barroso uma grande figura intelectual brasileira
E finalmente muitos tentam tecer críticas às obras de Gustavo Barroso pelo facto de o escritor ter-se mantido fiel à doutrina filosófica do integralismo, caracterizada por um nacionalismo conservador e pela defesa da integridade do Brasil contra a dominação estrangeira e de grupos de banqueiros internacionais.
Independente destas criticas ao autor de A senhora de Pangim não há dúvida que Gustavo Barroso (1888-1959) foi uma grande figura da vida intelectual brasileira com a sua vasta obra de 128 livros. Gustavo Barroso exerceu diversos cargos como o de diretor do Museu Histórico Nacional brasileiro (a partir de 1922), presidente da Academia Brasileira de Letras em 1932, 1933, 1949 e 1950. Era membro entre outros da Academia Portuguesa da História, da Academia das Ciências de Lisboa e da Royal Society of Literature, de Londres.
Maria Lencastre e a revelação do seu verdadeiro sexo
Maria Úrsula de Abreu e Lencastre, uma descendente da Casa Real de Lancaster, da Inglaterra e conhecida como a mulher soldado, nasceu na capitania do Rio de Janeiro, em 1682. Aos 18 anos fugiu da terra natal, disfarçada de homem, e embarcou para Lisboa onde alistou-se em 1º de novembro de 1700 como soldado com o nome de Balthazar do Couto Cardoso. De Lisboa partiu para a Índia e nunca mais voltou ao Brasil.
Serviu na Índia Portuguesa durante cerca de doze anos onde destacou-se em numerosos combates e adquiriu grande reputação militar sem revelar o sexo. Segundo C. Boxer, em “A mulher na expansão ultramarina ibérica”, salvou o seu capitão, Afonso Teixeira Arrais de Melo e Mendonça em perigo eminente de ser morto ou capturado pelo inimigo mas, ao fazê-lo, foi ferida com gravidade, o que levou à descoberta de seu sexo. Cerca de 1714, retirou definitivamente o disfarce e casou-se em Goa com o mesmo oficial militar Afonso Mendonça, capitão da fortaleza de S. João Baptista, em cuja companhia servira em Chaul (Índia).
Em 12 de Maio de 1714, ao fim de cerca de 12 anos de serviço militar, foi desmobilizada e por despacho real de 8 de Março de 1718 foi-lhe concedida a mercê do passo de Pangim, por um período de 6 anos, cargo que poderia renunciar nos seus filhos e na falta deles em quem quisesse.
Recebeu do rei D. João V uma renda regular que a beneficiou com uma pensão vitalícia. Morreu em Goa cercada de honras.
Aurobindo Xavier