O Prof. Nelson Gonçalves Gomes*, da Universidade de Brasília (Brasil) esteve em Fevereiro deste ano de visita a Goa. Numa entrevista que concedeu à LSG descreve as suas impressões sobre Goa, relata sobre a sua visita ao Seminário de Rachol e refere possibilidades concretas para incentivar o intercâmbio entre Brasil e Goa. Aborda também a globalização e claro não esquece a boa comida goesa.
LSG – O Prof. Nelson visitou pela primeira vez Goa em Fevereiro deste ano. Qual foi a sua impressão de Goa no contexto da lusofonia?
Prof. Nelson Gomes – Qualquer brasileiro deixa-se enlevar pelo facto de ouvir falar português em pleno sul da Ásia. A língua estabelece um laço imediato entre goeses, portugueses e brasileiros, laço esse que se estende a múltiplos aspectos da cultura local. Em Goa eu senti-me em casa, porque lá estava a minha língua. Mesmo que não seja a fala de todos, o português de Goa é de excelente qualidade, claro e correto. Lembrei-me da célebre frase de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa”. A distância física entre povos torna-se irrelevante quando a língua lhes é comum…
LSG – …de facto, para os brasileiros e parte dos goeses a língua é comum, mas presentemente os brasileiros em geral têm uma noção, nem que seja vaga, onde fica Goa?
Prof. Nelson Gomes – Brasileiros instruídos, seguramente, sabem algo sobre Goa, ainda que não seja muito. No mundo acadêmico mais sofisticado, as pessoas conhecem fatos fundamentais sobre a realidade goesa. Quando eu retornei de viagem, ouvi perguntas de colegas, amigos e alunos a respeito da língua portuguesa em Goa e sobre outros aspectos da vida local, o que denota algum conhecimento e certo interesse. Além disso, eu conheço vários brasileiros que já estiveram em Goa. Honestamente falando, porém, o grande público do Brasil tem pouca ou nenhuma informação sobre o assunto. O sistema educacional brasileiro é deficiente.
LSG – Durante a sua estadia em Goa teve oportunidade de visitar o Seminário de Rachol, visitando a sua célebre biblioteca e dando uma curta aula de Lógica aos seminaristas. O que é que lhe impressionou mais nessa sua visita a Rachol?
Prof. Nelson Gomes – Em termos pessoais, apreciei muito a hospitalidade do Padre Ferrão e a agradável conversa com ele. A aula foi uma experiência única de contacto com jovens seminaristas tão simpáticos e interessados. Em termos históricos, Rachol é um monumento de valor inestimável, uma joia do século XVII. É tudo muito impressionante: a entrada com as armas de Dom Sebastião, a linda igreja cheia de pormenores artísticos e arquitetónicos e a biblioteca, que, seguramente, guarda um acervo precioso. Deixei aquela casa a pensar em formas de colaboração internacional efetiva, de maneira a buscar meios de beneficiar essa instituição que vem cumprindo um papel tão importante na história de Goa.
LSG – A cooperação sul-sul no âmbito da lusofonia deveria estreitar ainda mais os laços entre o Brasil e a Índia. Do ponto de vista de um brasileiro, e já que conhece Goa, quais os aspectos não comerciais que enfocaria no aprofundamento de uma colaboração entre Brasil e Goa?
Prof. Nelson Gomes – De imediato, eu citaria duas possibilidades. Na medida em que estou bem informado, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil tem um serviço de apoio à lusofonia. Seguramente, haveria interesse em incentivar qualquer colaboração cultural relativa à presença da língua portuguesa em Goa, mesmo porque Brasil e Índia têm laços estreitos de cooperação em diversos âmbitos, membros que são dos BRIC. Ao lado do concani e do inglês, o português é um dos idiomas de Goa, o que o torna uma das riquezas da Índia. Em segundo lugar, menciono o trabalho de historiadores a propósito do nosso passado comum, trabalho esse que nem sequer começou, ao menos em proporções significativas. Essas duas possibilidades não são as únicas. Elas merecem ser exploradas, mas há outras disponíveis.
LSG – Quando se observa o atual movimento de “globalização” com os seus processos de integração econômica, social, cultural e mesmo política a nível mundial, não acha que foram os portugueses os verdadeiros precursores da ideia de “globalização” já a partir do século 15?
Prof. Nelson Gomes – Os portugueses foram precursores da globalização em três sentidos importantes. Primeiramente, em virtude da sua tecnologia naval, eles descobriram novos caminhos marítimos e chegaram a outros povos e culturas, alguns dentre os quais eram desconhecidos até então. Nas terras recém-descobertas, eles logo definiram e dominaram rotas cruciais por onde circulavam as riquezas. Em segundo lugar, graças ao seu ímpeto missionário, os portugueses estabeleceram contactos culturais que iam muito além das relações de comércio. Em Goa, por exemplo, parte da população goesa adaptou-se ao catolicismo, mas este também se acomodou à realidade da Costa Malabar, como se vê claramente na decoração da igreja de Rachol e na Basílica de Bom Jesus, com os seus anjos de feições morenas e com as suas representações de cajus. Por fim, as descobertas portuguesas encorajaram a aceitação do risco inerente às aplicações de capitais. Na primeira metade do século XVI, cada escudo investido nos negócios com a Índia rendia até cinquenta escudos de retorno. Hoje em dia, nós vemos a globalização nesses termos: tecnologia, viagens, integração cultural e negócios. Ora, tudo isso já estava presente nas grandes navegações lusitanas, especialmente no caso de Goa. Com respeito a esse processo, cabe lembrar o papel dos jesuítas, uma ordem religiosa internacional por excelência.
LSG – Entrando pelas coisas mais mundanas: gostou da comida de Goa? Há qualquer relação com a comida ou ingredientes da culinária brasileira?
Prof. Nelson Gomes – Como globalizadores que foram, os portugueses promoveram intercâmbios de iguarias. O sarapatel, se não estou errado, é goês na sua origem, mas foi levado ao Brasil, onde se integrou à cozinha da Bahia. Ouvi dizer que o piri-piri é africano, tendo sido introduzido em Goa pelos portugueses. Pessoalmente, nos meus tempos de estudante em Munique, eu conheci a cozinha goesa graças a amigos, que me prepararam um inesquecível caril. A partir daí, eu sempre quis saber e provar mais das delícias gastronômicas goesas. Os dias que passei em Goa foram uma festa para o paladar. O uso intensivo da pimenta e do coco são os aspectos dessa arte que mais me agradam. Os antepastos e as sobremesas são excelentes. Tudo é perfumado e colorido. A cozinha goesa tem personalidade própria, o que a torna diferente de outras tradições culinárias do subcontinente indiano.
*O Prof. Dr. Nelson Gonçalves Gomes, docente de Filosofia (especialmente de Lógica) na Universidade de Brasília (Brasil) desde 1976, fez curso de graduação de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e de pós-graduação em Filosofia (especialização em Lógica) na Universidade de São Paulo. É doutor em Filosofia pela Ludwig-Maximilians-Universität München (Munique / Alemanha). Desde 1993, é professor titular junto ao Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília.Fez pós-doutorado e estágios de pós-doutoramento nas universidades de Munique (Alemanha), Oxford (Inglaterra) Salzburg (Áustria), Hebraica de Jerusalém (Israel) e na London School of Economics (Inglaterra). Foi docente de História da Filosofia no Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto (SP).Foi um dos fundadores do departamento de Filosofia da Universidade de Brasília. Foi também membro do Comitê Assessor de Filosofia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil. As suas áreas de trabalho são Lógica, Filosofia Analítica e Metaética. Tem publicações nas suas áreas de trabalho.