Cultura

“Reconhecer publicamente o legado histórico de Portugal na Índia. É isso que conta.” Luís Filipe Castro Mendes antigo embaixador de Portugal na Índia em mensagem à LSG – Lusophone Society of Goa

A LSG – Lusophone Society of Goa solicitou ao Dr. Luís Filipe Castro Mendes, embaixador de Portugal na Índia entre 2007 e 2010 e presentemente Embaixador Representante Permanente de Portugal junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo, uma mensagem para o site da LSG que incluisse a sua experiência na Índia e aquilo que lhe marcou pessoalmente na Índia.
Castro Mendes salienta na sua gentilmente enviada mensagem “Eu vi os pescadores de Goa escoltarem, com flâmulas vermelhas e verdes nos seus barcos, o nosso navio-escola “Sagres”, que viera em visita oficial à Índia, a convite da Marinha indiana. Fizeram-no, não para sonhar com o regresso das caravelas, mas para afirmar publicamente que não queriam negar o passado. Ideia que aliás nunca ouvi a qualquer autoridade indiana em Nova Deli: bem pelo contrário, ouvi o Primeiro Ministro Manmohan Singh reconhecer publicamente o legado histórico de Portugal na Índia. E é isso que conta.”

 

Mensagem

Mensagem do Dr. Luís Filipe Castro Mendes à LSG – Lusophone Society of Goa sobre a sua experiência pessoal na Índia. O Dr. Luís Filipe Castro Mendes foi Embaixador  de Portugal na Índia entre 2007 e 2010  e é presentemente  Embaixador Representante Permanente de Portugal junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. 

Enquanto português a Índia marcou-me, não enquanto descoberta de mim através do outro (como me aconteceu no Brasil), mas como descoberta dessa “essencial heterogeneidade do ser” de que falava um poeta espanhol de que muito gosto (António Machado) essa heterogeneidade que está tão próxima, tão intimamente próxima, da nossa própria identidade.

E agora penso que a questão deveria ser posta ao contrário: o que é que não me marcou na Índia? É difícil falar da Índia, quando se cola a tudo o que dizemos o lastro de tantos discursos, tantos olhares, tantas interpretações pelas quais tentámos, tanto nós ocidentais como vós indianos (sim, porque também há “orientalistas” no Oriente), resumir a uma fórmula, a uma interpretação, a um tratado esse “múltiplo esplendor” (gosto de citar este lugar comum da Han Suyin) pelo qual a Índia se esconde e se revela num mesmo movimento aos nossos sentidos.

Apetecia-me falar do coração. Mas começo pela cabeça e, seguindo a lição de um clássico português, o Camilo, não esquecerei o estômago. A razão de ser da Índia moderna é evidentemente tomar o seu devido lugar no mundo com todo o peso da sua força, da sua capacidade, da sua riqueza e da sua inteligência. Mas o coração não esquece as mulheres violentadas nos autocarros de Deli, os dalits humilhados às portas das cidades ou a ternura de um inesperado olhar vindo de dentro do bairro da miséria. E o estômago: a fome combatida por esses milhões de camponeses, sem rentabilidade para os cálculos económicos modernos, mas sem alternativa à vista para os estômagos vazios.

A modernidade e a inteligência mais sofisticada podem coincidir assim com a barbárie? Mas isso não é exclusivo da Índia, como por demais sabemos. Walter Benjamin dizia que “todo o monumento de civilização é ao mesmo tempo um monumento de barbárie”. Grutas de Ajanta ou Capela Sistina, os escravos e os humilhados passaram por lá  e a sua sombra pesa na memória dos vencidos. Invasões mogóis ou ocupações portuguesas, guerras inglesas, colonizações, massacres ao fio da espada, o som e a fúria da História perduram na música obsessiva da memória. Mas eu não fui à Índia para participar na genuflexão ritual dos colonizadores ante os colonizados. Aliás poucos já se preocupam hoje na Índia com esse assunto. Quando a Europa se provincializa, certas erupções anti-coloniais têm o ridículo e o encanto de rendas velhas guardadas num cofre de cânfora. Afinal quem são hoje os colonizados?

Eu vi os pescadores de Goa escoltarem, com flâmulas vermelhas e verdes nos seus barcos, o nosso navio-escola “Sagres”, que viera em visita oficial à Índia, a convite da Marinha indiana. Fizeram-no, não para sonhar com o regresso das caravelas, mas para afirmar publicamente que não queriam negar o passado. Ideia que aliás nunca ouvi a qualquer autoridade indiana em Nova Deli: bem pelo contrário, ouvi o Primeiro Ministro Manmohan Singh reconhecer publicamente o legado histórico de Portugal na Índia. E é isso que conta.

Contrariamente ao que alguns desejariam, os escravos não se tornaram senhores para os senhores se tornarem escravos. De certo modo compreendemos hoje que somos todos, ao mesmo tempo, senhores e escravos: senhores, sim, da experiência extraordinária de globalmente nos conhecermos e de num mesmo instante nos tratarmos; escravos, sim, de um universal sistema de instantâneos efeitos, que atravessa espaços e nações e apenas conhece relações de força e diferenciais de riqueza. A cultura, poderemos dizer então, é o monumento que responde à nossa barbárie? Eu vi o sorriso elegante de Shiva na Ilha de Elefanta e o olhar apiedado de Nossa Senhora na Igreja Matriz de Pangim. De um olhar ao outro é o mais comum dos humanos que enfrenta, com uma misteriosa ironia, os avatares da História e o orgulho dos homens.

Luís Filipe Castro Mendes

Estrasburgo, 14 de Janeiro de 2013

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“Lendas da Índia” o último livro de Luís Filipe Castro Mendes

Luís Filipe Castro Mendes nasceu em 1950 e, ainda muito cedo, entre 1965 e 1967, foi colaborador do jornal Diário de Lisboa-Juvenil. Em 1974, licenciou-se em Direito pela Universidade de Lisboa e desenvolveu, a partir de 1975, uma carreira diplomática.

Chefia a missão portuguesa junto da UNESCO, em Paris, depois de ter sido embaixador em Budapeste e Nova Delhi.

O embaixador Luís Filipe Castro Mendes tem uma ampla obra poética publicada e premiada, tendo-se estreado literariamente em 1983, com o livro de poesia “Recados”. No ano seguinte publicou a obra de ficção “Areias Escuras”, à qual sucedeu “Seis Elegias e Outros Poemas”, galardoado com o Prémio da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. Publicou ainda “Ilha dos Mortos” (1991), “Viagem de Inverno” (1993), “O Jogo de Fazer Versos” (1994), “Modos de Música” (1996), “Outras Canções” (1998), “Poesia Reunida (1985-1999)” e “Os Dias Inventados” (2001).

Interrompendo um longo hiato de uma década Luís Filipe Castro Mendes volta à poesia com “Lendas da Índia” publicado em 2011 e distinguido com o Prémio António Quadros. Segundo texto publicado no n.º 106 da revista Ler, das 14 partes em que o livro Lendas da Índia se divide, oito evocam a passagem do diplomata pela Índia. Mas esta não é a Índia do exotismo, aquela que se abre aos olhos estrangeiros como uma flor misteriosa ou um segredo místico. O Oriente de Castro Mendes traz consigo a distância e a perplexidade do ocidental para quem «tudo nos é tão estranho aqui». Do anoitecer no Ganges, com os ghats preparando as piras funerárias, às chuvas das monções, aos ventos abrasadores do deserto e à «contemplação do lixo» (símbolo de uma «dividida modernidade»), das estátuas sorridentes nos templos de Angkor (Camboja) ao «incenso e bosta de vaca» junto às imagens de «deuses toscos» numa rua de Nova Deli, a poesia está «na aspereza das coisas contra nós». O poema acaba por ser o «saldo do dia», resgate de «tudo o mais que não fica na memória», e também um «acontecimento», o reverso da afasia, a instância onde as coisas se dizem, à procura do que um dia se perdeu.

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